segunda-feira, 30 de abril de 2018

Dias frios


À vista, o miúdo era giro, com a sua cara cheia, de bebé crescido, apesar do cabelo claro e revolto de miúdo reguila, que não combinava com os olhos baixos, postos nas joelheiras das calças de fazenda que lhe picavam no corpo.

O risco no cabelo, imposto por quem sabia e podia o que era melhor para ele e o que seria melhor que fosse e parecesse, era a marca da sua precoce herança. Estava ali, vincado a escova e ferro e no cabelo ora rebelde mas domado, contra a sua natureza, aquele risco definia-o. Não pelo que era, nem tão pouco pelo que não sabia se queria ou não ser, mas pelo que imperativamente se impunha além da sua vontade, do seu ser. O risco no cabelo era a sua linha de vida, oráculo divino, rédea do seu presente e redil do seu futuro.

À vista, o miúdo era giro, sossegadinho. Obediente, bem-educado passe a timidez que se lhe adivinhava nos olhos redondos mas sempre baixos, postos nas joelheiras das calças de fazenda que lhe picavam as pernas. Queixara-se ao vestirem-lhas, uma vez mais.

Picam, choramigou.

Está frio. Ditou a sentença.

Estava frio, mas as calças picavam. Era preferível o frio, mas não o disse. Não o sabia, não sabia que podia preferir, não sabia que podia escolher. Poderia, se pudesse, mas estava frio. As calças picavam-lhe as pernas. Se se queixava viriam os collants, e ainda era pior, como nos dias em que além de frio, estava muito frio. As calças picavam à mesma e os collants não o deixam mexer-se, colavam-se às pernas, e as calças picavam mesmo por cima dos collants.

Estava frio, durante a noite tossira. Era a tosse que revelava a sua cruz. A garganta. A garganta que inflamava com o frio, apesar das calças de fazenda que lhe picavam as pernas, mesmo por cima dos collants azuis que não o deixavam mexer-se. E a tosse picava na garganta e doía.

Não doía tanto como a sua voz, por isso preferia o silêncio. Dizia tudo o que queria, sentia e sonhava dentro de si, sem um som. Tão sossegadinho, tão bem comportado. Apesar dos seus olhos baixos postos nas joelheiras das calças de fazenda que lhe picavam as pernas. O risco marcado no cabelo outrora revolto selava o ar compassivo do miúdo. Às vezes os olhos levantavam-se e então a voz escapava, e saíam de si palavras que encontravam os outros e os outros notavam que o miúdo estava lá. Respondiam-lhe o suficiente e necessário para que voltasse ao silêncio, baixasse os olhos de regresso às joelheiras das calças de fazenda que lhe picavam as pernas e combinavam com o risco marcado no seu cabelo claro. Tão sossegadinho que voltava então a ser. No seu silêncio vivia sem causar incómodo, e tinha tudo o que precisava para as suas mil aventuras, aventuras reais que não combinavam com olhos baixos nem com o risco marcado no seu cabelo. Mas no seu silêncio, onde vivia sem causar incómodo, ninguém lhe marcava o risco no cabelo nem baixava os olhos porque nunca estava frio e não tinha de usar calças de fazenda que lhe picavam as pernas.

Estava frio e tossira durante a noite.

Depois do frio e da tosse vinha a dor, na sua cruz, a sua garganta, por onde a voz por vezes escapava. O frio trazia dor e com a dor vinha a febre. Uma mão na testa, um termómetro espetado no sovaco.

Já estás com febre, ditou a sentença.

Ao frio, à dor e às pernas picadas juntava-se a culpa de ter deixado o gorro na escola. Estava frio e não tinha o gorro, por isso agora estava doente.

Não tens cuidado nenhum, ditou a sentença.

O frio e a dor ficavam, mas as calças de fazenda davam lugar ao pijama, um alívio que apenas confortava por momentos. Vinham os supositórios e os xaropes. Dois dias depois, permanecia a febre e a dor crescia. Vinha o médico.

É garganta, ditou a sentença. Vai tomar antibiótico.

Mas injeções não, suplicou a garganta rouca e dorida.

A sua voz encontrou os outros que baixaram os olhos para os seus.

Tem que ser. Ditou a sentença saída dos olhos que quando se baixavam de encontro aos seus, não admitiam apelo.

Não! Gritou no silêncio dos seus olhos molhados e baixos. No seu silêncio não havia injeções. Não ia deixar, pensou no seu silêncio agora cinzento, de cabelo claro e rebelde. De pijama não era preciso pentear-se e tinha mais tempo para viver, dentro de si, nas fantasias reais e perfeitas que apenas o seu silêncio de menino sossegado e bem comportado permitia. Enquanto os outros não o notavam. Os olhos baixos sob o cabelo revolto sem risco marcado viviam agora dias tranquilos de sonho e silêncio, apesar dos xaropes, dos supositórios, das dores de garganta que quase só incomodavam quando o obrigavam a beber o leite demasiado quente.

Faz-te bem, ditou a sentença.

Depois do leite demasiado quente, dos xaropes e dos supositórios era livre de regressar ao seu silêncio, à sua fantasia real, quando os outros deixavam de o notar. E vivia.
Nestes dias de dor febre e xaropes, havia um dia, uma hora fatídica que transformava o seu silêncio.

Veste-te, vamos à rua. Ditava a sentença.

Onde vamos? Adivinhava, temia.

Ao centro médico. Ditava a sentença. Era a injeção.

O silêncio rompia-se em enxurrada de lágrimas. Não! Gritava com dor na garganta e no medo.

Não havia apelo. Tem que ser. Ditava a sentença. Anda, despacha-te.
Encolhia-se por fora e inchava por dentro. Os olhos baixos enterravam-se nas joelheiras das calças de fazenda que lhe picavam as pernas, mas não tanto como a injeção que adivinhava e temia.

A espera no centro médico era a antecâmara do suplício e o risco marcado no cabelo ditava-lhe o corpo solidificado colado à cadeira de plástico com os olhos inchados de medo e de raiva.

O medo que crescia dava-lhe uma força desconhecida. A raiva desfazia-lhe o risco marcado no cabelo, os olhos deixavam de ser súplica para se erguerem revoltosos de quem sabe o que quer e o que não quer. E não queria injeções. Nem uma.
Entra, ditou a sentença.

Entrava, hirto, maior que ele próprio. Olhos vermelhos e inchados, mais que a garganta, mas sem dor, apenas com a certeza que não haveria injeção.

Anda cá, ditava a sentença apontado para a marquesa onde tencionavam rasgar-lhe a pele com uma agulha.

Não! Gritavam os olhos erguidos com os punhos fechados e os pés fugiam para o abrigo que houvesse perto. Não havia risco no cabelo revolto, nem olhos baixos, nem miúdo bem comportado. Só gritos, só medo, só raiva, só certeza que não lhe dariam nenhuma injeção.
A sala do centro médico era agora arena. Agarravam-no. Gritava. Cala-te!.

Fugia, escorregava. Agarravam-no com mais força. Gritava mais, pontapeava, fugia, lutava com uma força que desconhecia, que não pertencia ao miúdo giro, com a sua cara cheia, de bebé crescido, de cabelo claro e revolto. Roubavam-lhe o silêncio, o seu mundo onde vivia, onde não incomodava nem era notado. Obrigavam-no a ser rebelde e rebelião. Mandava o miúdo bem comportado às ortigas, era a guerra. Saia palavrão e pontapé. Recebia um estalo na cara e na surpresa agarravam-no com a força de quatro braços adultos.

Não! Gritava uma última vez e adivinhava a agulha da injeção perto da sua pele prestes a ser rasgada antes do líquido se infiltrar debaixo do músculo.

Solidificava. Com uma força que desconhecia ter, lutava contra si próprio, contra o seu medo e a sua raiva, para permanecer imóvel. Fazia-se pedra e aço. Em silêncio. Não no silêncio em que vivia as suas fantasias reais. Mas naquele outro, negro de medo e raiva em que se exilava do mundo em que os outros se incomodavam pela sua presença, mas em que era supremo líder e condenava ao silêncio eterno todos os que o acabavam de tiranizar e violar o seu corpo com aquela agulha. Apenas as lágrimas saiam de si. A dor e o silêncio permaneciam sob os olhos molhados e inchados.

Sabia que a caminho de casa ressoariam as reprimendas e os ralhetes. Era indiferente. A sua vida era a dor da derrota que ficara marcada pela agulha espetada na sua pele.

Na chegada a casa a história da vergonha era recordada, recontada e apregoada a todos outros que se avizinhassem dos seus olhos inchados e baixos, acompanhada das devidas reprimendas. Os outros, esses que só existiam fora do silêncio em que vivia as suas fantasias e reais e sonhava. E vivia.

Odeio-vos! Sentenciou, em silêncio. A todos e a todo o mundo, só no meu silêncio sou eu e nele vocês não são nada. Mas só o miúdo sabia disso,com a sua cara cheia, de bebé crescido, apesar do cabelo claro e revolto. E orgulhoso disso, sabia que assim era.

Na telefonia passavam os verdes anos.

sexta-feira, 11 de agosto de 2017

E o jantar lá em casa era frango em ponto de caramelo.

Estas crónicas nasceram do desafio: “devias escrever isso”. E assim se foram colecionando histórias, conversas e episódios mais ou menos castiços vividos pelos miúdos. A necessidade de regista-los surge associada ao caricato da situação, do espontâneo, do inesperado. Maior parte dos episódios resultam numa gargalhada ou num sorriso fácil. Outras há que pelo seu peso, receito serem prejudicadas pelo enleio da falta de capacidade de síntese de quem conta a história, mas que não podem deixar de aqui constar.


A tarde fora de longa brincadeira entre os dois, e chegara a hora, pesasse a fadiga, de arrumar. A tarefa não era agradável, e no fim de um dia longo, a escusa resultou em discussão. Faço, não fazes, arruma tu, eu já fiz, e o crescendo conduziu ao conflito e o conflito cresceu alimentado pelo cansaço. O orgulho tomou conta da situação e dos corações e a coisa estava feia. Recusavam-se a fazer as pazes. A mãe, também cansada, desatinou com os dois e o ambiente geral estava pouco cortês. Havia que quebrar o ciclo, tarefa ambiciosa que assumi com pouco sucesso, pelo que ao jantar havia frango estufado em ponto de caramelo.

Entre algum ar zangado e umas piadas, lá tentámos os quatro desatar os nós da querela, deixando o episódio e apontando às causas e sentimentos que haviam estado na origem e estariam, almejávamos, na solução para mais uma zanga e uma birra numa semana já longa.

Ao longo da conversa à refeição, a mais velha agarrara-se de unhas e dentes à sua posição rezingona, de ofendida e perdera o pé. Já era birra pela birra. O mais novo entregara os pontos, sem remorsos, já só queria fazer as pazes mas a irmã não deixava.

Porque não queres fazer as pazes?

“Porque estou chateada”, sai-lhe da cara funda, com o olhar preso nos joelhos.

Sim, com quem?

A resposta, “ c o m i g o ”, escorreu-lhe do rosto a par com uma lágrima grossa.

Com isto levanta-se, vai lavar a cara e a alma, sigo-a com um carinho e algumas palavras de ânimo e a coisa compõe-se.
A história poderia acabar aqui. Mas o tema dos maus feitios continuava a ser debatido à mesa já em tom mais ligeiro.

O mais novo que havia estado mais ou menos contido ao longo da conversa considerou que devia dar o seu contributo. E rematando a conversa, lança a sua deixa:

“Eu não tenho mau feitio, eu sou o rei do bom feitio, porque não me quero chatear com as outras pessoas.
Eu quero ser a pessoa mais feliz da minha vida!”


Se tiverem alguma coisa a acrescentar a esta declaração, sintam-se convidados a fazem-no. Eu calei-me então, como agora, por ter no silêncio a minha melhor resposta.

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Declaração de integridade

                                
Cabia à mais velha, na divisão de tarefas domésticas, pôr a mesa para o jantar. Uma atividade que é sempre alvo de alguma contestação e resistência, mas que é considerada melhor do que a alternativa: levantar a mesa no final da refeição.

Estava empoleirada numa cadeira a retirar os pratos do armário quando a mãe, sentindo algum desinvestimento na prática musical, a resolve dispensar da tarefa em troca de alguns momentos de prática.
- Se vieres para aqui tocar, eu ponho a mesa por ti.
- nããã... senão tenho que levantar a mesa depois, e pega em mais um prato.
- Não, eu estou mesmo a comprar-te. Tu tocas e eu ponho a mesa em teu lugar.

A miúda pousa o prato que tinha na mão.
Pára estática do alto da cadeira, olha a mãe nos olhos e declara secamente:

- Eu não estou à venda.

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

O baptismo do meu avô

Em 1943 o meu avô tinha 25 anos, uma bicicleta e estava apaixonado.
A pretendida era de boas e burguesas familias de Benavente, comerciando diretamente com o Alfredo da Silva. E se apesar de o meu avô ser um paupérrimo carpinteiro, tal não viria a ser impedimento irremediável, um outro maior assombrava o casório: o meu avô era filho de um anarquista do Lavradio,  e como tal não era batizado.
Ora se queria casar, teria que ser na igreja católica com pompa,circunstancia, padre, missa e tudo. E para isso tinha que ser batizado, não havia volta a dar.
Ora então, a custo e contravontade lá pedalou até ao Barreiro a fim de pedir as bençãos ao Pároco, que nessa altura era não menos que um tal de Abílio Mendes.
Com a sua roupa domingueira lá chegou às falas com o padre que lhe pediu o nome
- Etelvino Vaz Atalaia
- do Lavradio? pede então o padre confirmação...
- Pois que sim.
- Filho do José que andou em 1910 a atirar os santos ao mar?
A coisa estava feia, mas o meu avô lá se desenfiou, alegando não ser nascido à data...
O filho do anarquista queria ser católico e isso não havia de trazer mal, deve ter pensado o Padre, pelo que he entregou um catecismo para que o estudasse nas duas semanas seguintes.
O meu avô lá terá passado os olhos pelo livrito e quinze dias depois apresentou-se de novo.
- Leste tudo?
- Sim.
- E sabes o que aí diz?
- Sim.
- E trazes dinheiro?
- Trago pouco, mas é o que tenho, disse o meu avô cujo parco ordenado servia para suportar as contas de casa, onde vivia com os pais.
- Ora dá cá o que tens - e pegando no dinheiro entregou de troco um papelucho ao meu avô: - toma lá o assento que já estás batizado.

E assim pode o meu avou casar com a minha avó, um par de meses depois na Igreja dos Anjos em Lisboa, com pompa, circuinstância, padre, missa, limosine e patrocínio do sogro.






sexta-feira, 26 de junho de 2015

O poder da média



Em conversa amena as duas primas trocavam impressões acerca das suas vivências na escola. A prima estava justificadamente orgulhosa das suas notas de final do 4º ano, "5" a tudo, e numa demonstração dos seus conhecimentos de matemática afirma com propriedade:
- "a minha média é 5"

A minha, que está a terminar o 3º ano do 1º ciclo sem que tenha feito um único teste escrito e que nunca lhe tenha sido atribuida uma classificação quantitativa, replicou pronta:

- "olha, a minha média é sagres!"


sexta-feira, 24 de abril de 2015

Os gnomos do 25 de Abril....



Ao jantar...

Ele - Amanhã vou apresentar um trabalho.
Eu - ai sim? Sobre o quê?
Ele - o 25 de abril. Sobre policiais maus, os homens que iam para a guerra e gnomos.
Nós - gnomos???!!!!!????!!!!!
Ele - nããã! Tava a brincar!

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Livro: Frases do Tomé, de Arnaldo Antunes



"É comum ouvirmos frases inesperadas pronunciadas pelas crianças e nos divertirmos com elas. Em alguns momentos paramos para pensar o que há por trás, mas nem sempre damos o valor que deveríamos.
Felizmente, há pessoas que prestam bastante atenção nisso. Um exemplo maravilhoso é esse livro, produzido por Arnaldo Antunes.
Tomé
Livro: Frases do Tomé aos três anos
Autor: Arnaldo Antunes
Editora: Alegoria, 2006
Tomé 1

Você provavelmente já ouviu falar do músico Arnaldo Antunes, ex integrante da banda Titãs eTribalistas. Além de músico, Arnaldo é um importante poeta brasileiro, escreveu mais de 10 livros, explorando a poesia-prosa e a poesia concreta.
Em 2006, deixou a criação um pouco de lado e publicou um livro em que foi apenas organizador, selecionando frases, anotadas por ele, de seu filho Tomé aos três anos de idade.

Tomé 2

No livro ele apenas ilustra as frases do filho. Em cada página há uma frase de Tomé e uma ilustração de Arnaldo e, no final, o resultado é um livro simples porém incrível, que mostra uma relação de cumplicidade e carinho entre os dois. E, principalmente, o pensamento inteligente de uma criança que tem espaço para dizer o que pensa.

Tomé 3

Ler os pensamentos de Tomé causam uma sensação incrível. Afinal, a imaginação e o raciocínio infantil são coisas espetaculares. As frases delineiam uma curiosidade inocente em relação ao funcionamento do mundo, a interação e a apropriação que os pequenos fazem.

Tomé 4